Era o velho mais velho que todas as tardes cumpria, sem saber, a arte de fascinar-me. Eu era garoto, muito garoto, não entendia quase nada do que se passava à minha volta, mas sabia sem qualquer dúvida que o tempo em que existíamos era de podridão; vivíamos debaixo do capricho de um cérebro doente de um velho de outra espécie, sem escrúpulos nem patriotismo, que definhava com a pátria usando-a como um capacho, promovendo a sua miséria e a morte por opção.
Ao outro velho, ao que conto agora, a vida dera outras e muitas mágoas, sem tréguas. Chamava-se Anastácio, pelo menos todos o cumprimentavam com deferência usando esse mesmo nome, antigo e poderoso – bom dia, senhor Anastácio – e vestia sempre o mesmo fato completo com colete e camisa branca, fosse verão ou mau inverno, outono brando ou primavera amena.
Todos os dias, Anastácio entrava na leitaria. Para quem não sabe as leitarias eram as mães dos cafés de hoje. Era lá que eu o via e observava, fixando-o.
Anastácio tinha tiques, rodava os ombros como se fosse investir, trincava os dentes que, sendo todos seus, envelheciam com ele. Pedia um café e um copo de água e o jornal que lia demoradamente, a tomar notas com lápis e papel modesto; ia resmungando com inaudíveis barulhinhos de desaprovação.
Eu era pequeno e pobre, só entrava na leitaria para vê-lo e para dar, confesso, uma olhadela à campânula que escondia fatias de bolo que eu sonhava serem doces, e ao frasco de vidro onde os rebuçados viviam longe de mim, muito agarrados a uns cromos de jogadores que nunca preenchiam completamente as cadernetas – o boneco da bola mais raro ou nunca saía ou estava colado ao fundo do pote.
Anastácio era um velho muito velho. Dizia-se mesmo que passara os cem anos. Tinha estado preso um par de vezes, a última por defender uns trabalhadores da Carris (a companhia carris de ferro de Lisboa, que ainda hoje opera na capital, sem mais memórias), quando perseguidos pela polícia e pelos seus cães, pastores alemães ou da Alsácia, que eram atiçados aos grevistas e que deixavam as suas marcas. Anastácio tinha uma enorme cicatriz no braço. Nunca a mostrava, mas falava-se dela, em voz baixa, podia alguém bufo estar de orelha alerta. Todos os dias, finda a leitura do jornal e bebida meia chávena de café e o copo de água quase por inteiro, Anastácio tirava papel de carta de um dos bolsos e escrevia um longo recado, que depois colocava diligente num envelope que selava e que levava ao posto dos correios, todos os dias, quase pela mesma hora. Todos os dias. Escrevia ao ditador. Escrevia sem metáforas e acabava sempre a pedir-lhe: por favor, morra primeiro do que eu para que depois eu morra também, aliviado.
O ditador morreu. Passadas quarenta e oito horas, Anastácio foi encontrado à porta de sua casa, no meio de selos, envelopes e folhas brancas espalhados à volta do seu corpo muito magro.
Anastácio, estendido no chão como se dormisse, sorria, iluminado, refeito, exibindo os seus dentes só um pouco menos velhos do que ele.
Alexandre Honrado
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